20/11 – Dia da Consciência Negra; texto por Mariangela Dias*
Dia desses, uma de minhas amigas, ao chegar para trabalhar, encontrou o maior alvoroço. Uma funcionária fora assaltada em frente ao prédio. Levaram sua bolsa. Por sorte, não a agrediram. Embora a rua estivesse deserta e a moça tenha visto um sujeito estranho à empresa se aproximar pela outra esquina, não acelerou o passo, não teve medo. Alguém perguntou se ela não havia desconfiado. Ela, então, olhou para nossa amiga, que é negra, baixou a cabeça, e disse “Ai, desculpa… Ele era tão branquinho”.
O fato me fez lembrar o ano de 2018. Tive a oportunidade de assistir a uma palestra de Conceição Evaristo, na Fiocruz, aqui no Rio, por ocasião da reunião Anual da Associação Brasileira das Editoras Universitárias. Embora ouvi-la seja um aprendizado, o que mais me comoveu foi compreender como aquela senhora havia impactado os jovens adolescentes, ali presentes para homenageá-la.
Ouso dizer que a literatura de Conceição deu a eles mais que a alegria de se reconhecerem, a si e aos seus, nas histórias por ela contadas com maestria. Muito mais que a certeza de se saberem não sendo sempre os bandidos da história, os contos e romances da autora mineira os inspiraram a narrar suas trajetórias e a sonhar outras. Eu presenciei jovens renovados em entusiasmo para se expressarem, por meio de suas artes escrita e cênica, na luta para desmanchar o racismo, às vezes tênue, noutras escancarado, amargado por pretos e pretas.
Racismo este que transita em todas as esferas da sociedade e não seria diferente, portanto, no mercado de trabalho. Caetana Maria Damasceno, em seu livro “Segredos da Boa Aparência”, publicado pela Edur, em 2011, trata dos sentidos de raça e cor no mundo do trabalho no Rio de Janeiro, em particular sobre o trabalho doméstico feminino. Embora o recorte temporal seja de 1930 a 1950, os temas abordados no livro ainda são atuais, por isso assustam. Entre outros aspectos, Caetana argumenta sobre as dificuldades que essas mulheres enfrentavam quando se dispunham a romper o “pacto do silêncio”. Ou seja, que uma dada “cor” sempre ocuparia posições subalternas. E, uma vez que tal pacto fosse desfeito, como era complexo reconstruir a trajetória de vidas delas. Para ilustrar, a autora relata as histórias de duas mulheres que deixaram o emprego de doméstica e passaram a atuar uma como pequena empresária e outra como gerente de uma instituição bancária:
“[…] Nestas posições, envolvendo o contato direto com o público, os “clientes” e os funcionários superiores e subalternos — todos, por definição cultural, potencialmente pertencentes a segmentos estabelecidos ou “naturalmente” superiores porque “brancos” — elas experimentaram muitos impasses ou conflitos, mais ou menos sutis, dependendo da situação social em questão” (p. 159).
Ainda sofremos os efeitos de um racismo que atravessou séculos, daí ser constante e estrutural. A luta é pesada e não admite cansaço. Trago um episódio citado por Djamila Ribeiro, em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?”, publicado pela Companhia das Letras, em 2019. O leitor de dado jornal, da região sul do país, dizia que as pessoas negras têm aptidão ao crime e são menos qualificadas, por esse motivo lotam os presídios. Como bem argumentou Djamila, “O comentário desse senhor mostra que ele ignora as construções do racismo em nossa sociedade. Foram 354 anos de escravidão e, depois, não se criaram mecanismos de inclusão para a população negra.” (p.64). Os imigrantes, por outro lado, também vieram para o Brasil sem qualificação, mas receberam terras e oportunidades de trabalho, o que lhes possibilitou outra perspectiva histórica, conforme a autora esclareceu.
Até mesmo o dia escolhido para representar a luta contra o racismo recebe ataques. Assim temos visto, em particular, nas redes sociais. Ignoram os outros 364 dias e escolhem exatamente o 20 de novembro para abordarem a questão do respeito à pessoa humana e não somente ao povo negro. Entendo que o Dia da Consciência Negra não quer de forma alguma aplacar o sofrimento enfrentado por outros povos ou as lutas de grupos excluídos. Deseja-se o respeito a toda criatura humana, seja preta ou branca. Mas quando um indivíduo sofre todo tipo de ofensa, discriminação, preconceito, restrição de direitos tão somente por causa de sua cor de pele, não façamos pouco caso. A dor ainda é muita. Compreender o que passo não minimiza o que você sente. Deveria nos tornar mais solidários, jamais rivais.
Nem mesmo os nossos pequenos estão livres do preconceito. Relembro certo programa de TV que simulou o caso em que uma criança, de cinco ou seis anos, havia se perdido dos pais. Ficava a andar de um lado para o outro, em frente a uma loja, de um bairro comercial. A criança negra teve ajuda uma única vez. A criança branca teve ajuda todas as vezes em que o teste foi realizado.
O que nos faz pensar ser a criança negra não merecedora de ajuda? O mesmo que nos leva a acreditar serem os ladrões todos pretos; cabelo bom, o oposto do crespo; não haver orgulho ser oriundo de uma nação africana; pensar nas religiões de matriz afro-brasileiras como malignas; as músicas negras, malditas; a mulher negra ter beleza apenas se for uma personagem de carnaval e por aí vai.
Conceição Evaristo, em Becos da Memória, publicado pela Editora Pallas, em 2017, não nos deixa perder a direção de que a mudança pode acontecer, apenas não vem de mão beijada:
“[…] Acreditavam e diziam que a vida de cada um e de todos podia ser diferente. Que tudo aquilo estava acontecendo, mas muita coisa poderia mudar. E quem mudaria? Quem mudaria seria quem estivesse no sofrimento. Quem arreda a pedra não é aquele que sufoca o outro, mas justo aquele que sufocado está.” (p. 136).
* Escritora e servidora da Edur.